Ao dizer "eu sou isso", naturalmente estou dizendo também "que não sou aquilo que negaria o que eu sou". Parece jogo de palavras mas não é. Ao identificar que eu sou Fábio, naturalmente estou dizendo que não sou Fernando. A identificação é também diferenciação, porque em toda afirmação há sempre uma infinidade de negações latentes.
Essa identidade necessita ser cultivada. Vivemos constantemente nesse processo. O tempo todo reivindicamos o que somos e também renunciamos o que não somos. Identidade estabelece limites, assim como os conceitos limitam a realidade. Limite que não pode ser considerado como negativo.
Pág.: 18
Somente depois de ter andado por terras estranhas
é que pude reconhecer a beleza de minha morada.
A ausência mensura o tamanho do local perdido
evidencia o que antes estava oculto,
por força do costume.
Olhei minha mãe como se fosse a primeira vez.
Olhei como se eu voltasse a ser criança pequena
a descobrir-lhe as feições tão maternas.
Abri o portão principal como quem abria
um cofre que resguardava valores incomensuráveis.
As vozes de todos os dias estavam reinauguradas.
Deitei-me no colo de minha mãe como se quisesse
realizar a proeza de ser gerado de novo.
Suas mãos sobre os meus cabelos
pareciam devolver-me a mim mesmo.
Mãos com poder de sutura existencial...
Era como se o gesto possuísse voz,
capaz de me dizer:
Dorme, meu filho, porque enquanto você dormir
eu lhe farei de novo.
Dorme, meu filho, dorme...
Pág.: 32
Deus nos entrega a nós mesmos o tempo todo. É presente que tem o poder de nos encantar pela vida inteira. É presente imenso que requer calma no desembrulho. Vamos aos poucos, tomando posse, retirando lacres, descobrindo detalhes. Tornar-se pessoa é aventura constante de busca, e o resultado dessa busca é disposição de si.
(...)
Ser visitado é também um jeito de reconhecer o que possuímos. A presença do outro nos indica o que somos. Um encontro nos diferencia num primeiro momento para depois congregar. No processo da diferenciação está a posse de si mesmo. Unimos o que não somos ao que os outros já são.
Somos semelhantes às tramas de teares. Os fios se entrelaçam para juntos formarem tecido. Em suas cores diversas, eles não deixam de ser o que são; apenas entram na trama que comporá o todo.
(...)
Uma palavra na solidão tem um significado particular. Quando colocada no contexto da frase, porém, ela amplia a sua capacidade de significar. É o abraço das palavras que gera o significado da frase. Ser pessoa é, antes de qualquer coisa, ser uma palavra, para depois ser frase.
(...)
O amor talvez seja isso. O encontro de partes que se complementam, porque se respeitam. E, no ato de se respeitarem, ampliam o mundo do outro. O recém-chegado não tem direito a reduzir o mundo de quem se deixou encontrar. O amor não diminui, mas multiplica.
Quem ama quer conhecer. O objetivo é simples: acrescentar, multiplicar em vez de subtrair.
Não é tão simples saber se o outro nos ama ou não mas há uma pergunta que podemos nos fazer e que contribuiria para que nos aproximássemos de uma resposta. Depois que ele chegou, a nossa vida, nosso mundo, diminuiu ou dilatou-se?
Sempre que alguém chega à nossa vida, nunca chega sozinho. Traz seu horizonte de sentido.
O exemplo é simples e nos ajuda a entender. É impossível comprar uma casa só com as paredes e acabamentos. Não é possível transplantar uma casa. Se quiser a casa, terá de ver o local em que ela está construída.
Amar alguém consiste em observar onde estão as vigas de sustentação, para que não corramos o risco de derrubar o que faz permanecer de pé. O interessante é que a construção poderá ser reformada, melhorada, sobretudo nos acabamentos. O amor é criativo, dribla os limites, supera expectativas.
Pessoas são semelhantes à construções. Possuem históricos que necessitam ser respeitados. Não acreditamos que alguém se interesse por uma propriedade, ou dela queira aproximar-se, para torná-la pior. Se alguém precisa comprar uma casa, já o fará pensando nas melhorias que podem ser feitas, mas regredir nunca.
Se as nossas relações com as coisas já são cheias de cuidados, muito mais deveríamos fazer com as pessoas.
É assim que podemos intensificar o nosso processo de "ser pessoa". À medida que motivamos e somos motivados para o autoconhecimento, tornamo-nos proprietários do que somos e naturalmente colocamo-nos à disposição dos outros.
É muito interessante perceber que onde existe uma pessoa de verdade, isto é, no sentido exato do termo, ali outras pessoas também estão sendo feitas. Isso se explica por uma razão muito simples. O processo de tornar-se pessoa é contagiante. Quando encontramos alguém que verdadeiramente está desbravando seu universo de possibilidades e limites, de alguma forma nos sentimos motivados a fazer o mesmo.
Págs.: de 60 a 65
Uma coisa é certa: maior é o bem que nos provocam, maior é o desejo que temos de ficar por perto. O desejo sobrevive assim. O outro nos apresenta um jeito novo e interpretar o que somos, e por essa nova visão nos apaixonamos. O que nos encanta no outro é o que ele nos conseguiu fazer enxergar em nós mesmos. Egoísmo? Não. Apenas o primeiro pilar do conceito de pessoa alcançando uma profundidade ainda maior dentro de nós.
Pág.: 89
Perder não é tão vergonhoso assim. Saber perder é um jeito estranho de perder sempre. Ou assimilamos o que perdemos hoje, e assim perdemos de uma única vez, ou então fingimos que não perdemos, e assim perderemos a vida inteira.
Pág.: 125
Sequestros velados.
Pessoas que, na incapacidade de compreender os limites de suas histórias pessoais, passam a buscar nos outros os preenchimentos de suas lacunas. Amores que não são amores. Amores que se cicatrizam como competições sórdidas, desumanas, ainda que amamos o poder tão destruidor que tantas vezes lhe é inerente.
Pág.: 127
Que o seu chegar seja mais que um simples chegar.
Que seja o símbolo de um tempo de demoras e permanência.
Deitarei a toalha branca sobre a mesa e permitirei que suas pontas venham cobrir também a minha alma.
Cada vez que nossa mesa é posta, muito mais que um alimento, a vida nos é oferecida!
Que seja assim.
Que nossa fome de amor e de fraternidade seja sempre saciada nos olhares dos quais nos serviremos.
Pág.: 137
Olha devagar para cada coisa.
Aceita o desafio de ver o que a multidão não viu.
Em cascalhos disformes e estranhos diamantes sobrevivem solitários.
Pág.: 144
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